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Casada, fútil, quotidiana e tributável

Casada, fútil, quotidiana e tributável

31
Ago21

Pão e circo

Amélia C.

O lambe-botas voltou a comentar no meu perfil e eu arrependi-me de ainda não o ter desamigado. O pedante também me deixou um comentário, dizendo que só as pessoas muito cultas perceberiam a chalaça. A  cinquentona sanguinária pegou-se com um machista qualquer por causa de uma anedota misógina. A escritora medíocre partilhou uma fotografia do livro dela na Feira do Livro. A escritora invejosa fez like a esse post e o lambe-botas também. A escritora medíocre,  apesar de não escrever nada de jeito,  é merecedora de likes, por ser muito bem relacionada. O pedante gosta dela e os outros fazem por se manterem cordiais. A cinquentona sanguinária continuou a discussão com o machista. O machista comenta no perfil do intelectual ressabiado que também não gosta da cinquentona sanguinária, despreza a escritora medíocre e  o lambe-botas. Não sei o que ele pensa do pedante. O intelectual ressabiado é um libertário de cabelo oleoso que só verga a mola no perfil do eminência-parda da cultura, que é um velho que se baba para cima das gajas novas. Conheço uma tipa que há uns anos foi para a cama com ele. Não publicou nada, mas ainda conseguiu dar uns cursos de escrita criativa.

E eu, que eles não fazem ideia de quem eu sou, que sou invisível do alto das suas torres de marfim, divirto-me.

 

 

24
Ago21

Ri-te

Amélia C.

Tenho um colega do marketing que é um arrogante de merda e um misógino. Daqueles tipos que despejam muita terminologia, muita sigla, para mostrarem que são muito experientes, muito competentes, muito qualquer coisa que não vale um chavo. Trata as colegas mais novas com um paternalismo insuportável e as mais velhas, que já não brilham como as contas de vidro, como eu, com um profundo desprezo. Não suporto ouvir-lhe o debitar de histórias que metem sempre multinacionais e pessoas muito importantes. Não lhe suporto a altura mediana, as mãos pequeninas,  que devem estar sempre transpiradas, o tom de voz com a má índole espartilhada pela boa educação, o sapatinhos de fivela muito muito lambidos pelas línguas dos que dependem dele aqui na empresa. Não lhe suporto as ameaças veladas e os insultozinhos subentendidos.

 Hoje,  cumprimentou-me  com aquela meia voz das pessoas ressabiadas. Olhei para ele e ri-me, como me ri daquela  vez para o homem do Jardim da Estrela que abriu a gabardine e se começou a masturbar ali, à frente de três miúdas de doze anos. E eu ri-me, tal como o meu primo mais velho me tinha dito para fazer se acaso algum dia encontrasse um maluco desses, ri-te que eles não aguentam, ri-te que é o pior que lhes podes fazer. Ri-te. E eu ri-me, cheia de medo, antes de começar a correr atras das outras, corri tão cheia de medo que caí na na primeira curva do caminho, onde esfolei os joelhos e desatei a chorar.

Ri-me  e o meu colega do marketing apertou os lábios até lhes desaparecerem na cara, franziu o sobrolho de pessoa irrepreensível, voltou-se para a estagiária que entrou a semana passada e humilhou-a à frente de todos, até quase a fazer chorar.  E eu voltei-me para a miúda e, com voz esfolada pela terra batida de todos os caminhos, ordenei-lhe: ri-te.

23
Ago21

Estendal

Amélia C.

Cheguei mais cedo do trabalho. Estacionei o carro na praceta, por debaixo das árvores que largam uma espécie de algodão no fim da primavera. Um dos andares dos prédios em frente, tinha as cordas cheias de roupa. Os lençóis das cordas, com padrões de flores esbranquiçadas, esvoaçavam (agora faz sempre vento), tapando a roupa de vestir, mais colorida e ordenada por tipo de peças na corda da frente. Fiquei dentro do carro a observar o estendal e a lembrar-me de um estendal da minha infância, umas das mãos que me criaram a pôr as molas nos lençóis que o vento impedia que rojassem no chão, o cheiro a sabão, o vento quente e o dia do regresso a chegar, eu não quero voltar, as molas de madeira debotadas pelo sol, a prenderem o cheiro branco dos lençóis, eu não quero voltar,  tem de ser, a voz por detrás dos lençóis a dizer-me. Saí do carro, uma vizinha que passava, vendo-me olhar para o estendal dos lençóis de flores esbranquiçadas, comentou, temos de levar esta mania horrível dos estendais à próxima reunião de condomínio, parece uma aldeia, isto. Que sequem na máquina caramba. Não respondi, encostei-me ao capô do carro, a fingir que procurava alguma coisa na mala, um dos lençóis enrolou-se no ar e caiu sobre a corda da roupa colorida. Deixei-me ficar ali mais um pouco. Não me apeteceu voltar a casa.

20
Ago21

Chocos com tinta

Amélia C.

Almocei sozinha, como quase sempre faço, num restaurante de bairro a uns quarteirões do escritório, longe de todos os sítios onde os meus colegas costumam almoçar. Nunca vêm aqui, ainda são quinze, vinte minutos a pé e ninguém está para isso. Preferem ir correr ao fim do dia ou treinar em ginásios onde deixam o carro à porta. Por isso, nunca vêm aqui.  O que torna este restaurante no sítio perfeito. Cheguei ao restaurante, fiz sinal ao senhor Luís, ele apontou-me a mesa, é quase sempre a mesma, a da ponta, perto da berma do passeio. Depois, trouxe o individual de papel, o prato, o pacote dos talheres e a água de meio litro, natural, disse-me o que havia hoje, perguntou-me se eu queria uma tacinha com azeitonas, disse que não, abriu o guarda-sol e voltou para dentro.

Hoje, havia chocos com tinta e carne assada com puré de batata. Escolhi a carne assada. Enquanto esperava pela comida espreitei o Facebook, nada de novo, nada que interesse, deitei o olhar na rua esvaziada pelo mês de Agosto e reparei nos cantos da boca, pretos pela tinta dos chocos, do homem sentado na mesa ao lado. Fez-me impressão, especialmente quando levou o guardanapo à boca e o tingiu de preto azulado. Desviei o olhar, enojada e reparei que as tílias já estão a amarelecer (não sei se são choupos, se são tílias, que a mim as árvores parecem-me quase todas iguais), que já há algumas folhas no chão, que as pessoas batem muito com os talheres no prato, que muitas têm o péssimo hábito de pôr os cotovelos em cima da mesa, que falam estupidamente alto, que o prédio da frente tinha o painel das campainhas arrancado, que um dos caixotes do lixo estava a transbordar com embalagens do Mac Donalds que há a duzentos metros, que cada vez há mais velhos na rua, que a carne assada vinha fria, com o molho cheio de bolhas de gordura e o puré com grumos,  e que de há uns anos para cá faz sempre vento na Cidade. Pedi a conta e o café, o homem dos chocos rapava agora, ruidosamente, a taça do arroz doce, guardei a garrafa com o resto da água na mala de imitação de pele que comprei numa dessas lojas de roupa baratas, que têm sempre a música aos berros e cheias de miúdas da idade das minhas filhas e fiz a caminhada de volta. Esta hora de silêncio, a três quarteirões da minha vida insuportável, faz maravilhas à pouca sanidade mental que me resta.

19
Ago21

Sentenças

Amélia C.

Não há paciência para impolutos. Para pessoas que nunca erram. Que apoiam todas as proibições, todos os controles, todas as multas, sanções, castigos, punições. Que não fumam, não bebem, não comem fritos, nem deixam a casa a cheirar a guisado. Que perguntam sempre pela salada de fruta quando se lhes oferece uma fatia de bolo. Que fazem caminhadas todos os dias, que se levantam às seis da manhã, que se deitam cedo, que não são inúteis, que não procrastinam, que não são incompetentes, nunca se atrasam, que antecipam. Que nunca pediram nada a ninguém,  só autorizações. Que sabem sempre como educar os filhos, especialmente os dos outros. Que têm sempre o dedo apontado, eu bem te disse. Que prevêem todas as desgraças, que antecipam todos os problemas. Que fiscalizam por entre os cortinados e bufam tudo o que podem. Que cospem muitas sentenças e acham que cada um tem aquilo que merece. 

A minha colega Maria do Céu é assim. Ainda hoje veio dizer que acha muito bem que se proíbam os bolos nos bares das escolas, porque o Estado tem de dar o exemplo.

Enfarda todos os dias um mil-folhas e sai sempre esbaforida às 18.00, para ir fazer o jantar ao marido.

18
Ago21

Poder

Amélia C.

No Facebook os murais começam a tornar a questão dos direitos das mulheres afegãs em barricadas de esquerda e direita. Imbecis. Não suporto ver raiva, despeito e frustração disfarçados de superioridade moral. Quando se estabelece uma barricada só ficam os insultos, as distorções para humilhar quem já nos humilhou, para vencer quem já nos derrotou. Espezinhar quem, por alguma razão, se torna vencido. É sempre uma questão de poder.

Fecho o Facebook.

Há muito que deixei de ter alguma coisa para dizer neste sítio. Há muito que fui largando a embriaguez dos aplausos de quem não leu mais do que a minha primeira linha. Há muito que me saturei dos seguidores que querem sempre alguma coisa em troca. Da febre de ser conhecida, de ser reconhecida, amada, lembrada. Há muito que me desiludi com a ambição de pertencer a um grupo de eleitos que nunca me abrirão a porta. Há muito que me afastei dos cães esfaimados por um mísero osso de fama. Só quero deambular por entre tudo aquilo que nunca fui capaz de dizer, tropeçar em todas as palavras que gaguejei, que mastiguei por cobardia, perder o medo da minha própria escuridão. Só quero, como o outro dizia, ser sozinha. Só quero ser sozinha para poder ser eu. Poder ser eu. É sempre uma questão de poder.

16
Ago21

Cabul

Amélia C.

No Facebook passa-me pelos olhos uma fotografia a preto e branco de três raparigas "coquettes". Uma tem o cabelo comprido, outra tem o cabelo curto e a terceira traz o cabelo preso num rabo-de-cavalo. As três usam mini-saia e sorriem para a fotografia. E como legenda diz: “Cabul no princípio dos anos setenta.”

Já conhecia esta fotografia, vi-a há uns anos no mural de alguém. Tenho ideia que sempre que o Afeganistão é notícia ela volta a circular pelas redes sociais.

Partilhei-a no meu mural. Ainda pensei em escrever qualquer coisa, mas tudo me pareceu imensamente inútil. As ondas de solidariedade do Facebook têm o condão de me fazer sentir assim: imensamente inútil, estupidamente superficial, aqui sentada no meu conforto ocidental a pôr molduras de apoio na  fotografia de perfil, a partilhar fotografias de mulheres vestidas de mini-saia, enquanto do outro lado do mundo, tantas famílias iguais à minha, um pai, uma mãe e duas filhas, tentam desesperadas fugir e arranjar, a qualquer custo um lugar num avião. Tentam desesperadamente sobreviver.

Sobreviver.

Sobreviver.

Foi o que eu escrevi como legenda da fotografia. Depois ri-me com um cartoon sobre engate e deixei um adoro num pôr-do-sol na praia da Amália. A do engate estava mesmo muito boa.

 

 

16
Ago21

Agosto

Amélia C.

Detesto o mês de Agosto. Não suporto o calor, o silêncio do prédio, as publicações de férias felizes no Facebook, as viagens inesquecíveis, as fotogenias impecáveis, os descansos merecidos. Desprezo a minha pena de não ser como toda a gente,  os meus pés inchados, os tecidos a colarem-se-me nos sovacos e no suor das costas e agora mais a máscara a afoguear-me e a derreter-me a expressão, mostrando quem realmente sou. Nem em miúda gostava do mês de Agosto. Eram trinta e um dias de solidão, presos no ar rarefeito da casa onde fui criada, à espera que outros regressassem.  O mês de Agosto pesa-me, arrasta-se nos meus dias baços, cansados, sem dinheiro nem horizontes e demora-se a minha vida inteira na inveja que eu tenho dos outros.

15
Ago21

Insónia numa noite quente

Amélia C.

Por causa do calor ontem tive uma noite de insónia e vim até à  varanda, na esperança de um bocadinho de fresco. Não soprava uma aragem, as árvores da praceta estavam imóveis, não se movia uma folha. No prédio ao lado um vizinho e o seu cigarro faziam a mesma coisa que eu. As luzes da rua, mais três janelas iluminadas, quebravam a escuridão. Numa rua perto, alguém  riu-se por cima de uma voz mais grave que gritava qualquer coisa,  foram esmorecendo à medida que se afastavam, as vozes e um carro que passou e depois outro e ainda outro. O meu vizinho e o seu cigarro continuaram no mesmo sítio. Abri duas cadeiras, uma para me sentar e outra para pôr os pés, encostei-me ao gradeamento e fiquei ali, a pensar em todas as coisas que normalmente me tiram o sono nas noites em que não faz tanto calor. As coisas que se sucedem, umas atrás das outras e que tornam as noites enormes e insuportáveis.  O meu vizinho pigarreou e eu abri o Facebook no telemóvel, corri o feed com o indicador. Surgiu uma notificação nas mensagens. “Estás acordada?”, perguntou-me a Ana. Não abri a mensagem e saí da aplicação. Não quero que as pessoas saibam das minhas insónias, não quero que me façam perguntas sobre o que me preocupa, que me aconselhem Dormidina, chá de camomila, leite quente, música calma. Não quero que as pessoas saibam o que dói, o que me tira o ar, o que me faz deambular pelo silêncio da noite. Pareceu-me que se levantou uma aragem pelo restolhar das folhas das árvores, sentia-a pouco depois na transpiração do pescoço, o que, estupidamente me trouxe uma grande tranquilidade. Uma das janelas apagou-se, ficaram só duas, eu, o meu vizinho e o seu cigarro a quebrarmos a escuridão

13
Ago21

Cinzento

Amélia C.

Está um calor insuportável. Quando era mais nova adorava os dias quentes, mas com a idade deixei de gostar do calor. O corpo permanentemente transpirado, as abas do nariz reluzentes de suor e a cara afogueada tornaram-se um martírio. Abri a janela ao lado da minha secretária, houve logo quem se queixasse da corrente de ar que traz constipações e faz esvoaçar os papéis. Ignorei e limpei o suor do pescoço com a mão. Uma voz, a meio da sala, mas ainda nos primeiros metros da vida adulta, fez questão de declarar que adorava o calor. Logo se juntou um coro, que senti que também era de protesto contra a minha janela aberta, a enaltecer as virtudes e a beleza do verão.

Não respondo. Finjo que não oiço.

Vivi muitos anos num sítio que amanhecia sempre cinzento e frio. O sol só se mostrava depois de almoço ou, muitas vezes, já quando a tarde ia alta. Por causa disso, custaram-me muito os primeiros anos nesse sítio. As pessoas da terra tinham um dito: “ainda abre hoje”. Nunca se enganavam. Talvez esse tempo me tenha ensinado a viver com o cinzento, a descobrir-lhe alguma beleza, a saber esperar por um bocadinho de luz e calor que só nos aquecia durante umas horas. Talvez esse tempo me tenha feito perceber que o cinzento e a luz podem coexistir no mesmo dia, todos os dias de uma vida e a saber esperar que “ainda abra hoje”. Apesar disso custou-me realmente muito a habituar a essas manhãs cinzentas, que por vezes se tornavam quase dias inteiros. Muitas vezes me pareceram insustentáveis, rangendo-me a tristeza nos ossos.

Mas quando voltei para a Cidade, percebi que já não sabia viver sem cinzento. Senti-me perdida por entre tanta luz. E percebi que eu já não era da luz crua nem dos dias quentes nem de tudo o que tomamos por garantido. 

Aproximei-me da janela e soube-me bem a aragem. Secou-me o suor que me escorria no decote. Atrás de mim, o protesto continuava. Olhei para aquela pequena esquadria do Rio por entre os prédios altos, que vemos deste oitavo andar. Por cima do Rio pareceu-me que se formava uma neblina cinzenta.

Sorri de alívio.

 

 

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