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Casada, fútil, quotidiana e tributável

Casada, fútil, quotidiana e tributável

08
Set21

Várias maneiras

Amélia C.

A Rafaela dos recursos humanos perguntou-me se eu ia votar nestas autárquicas. Respondi-lhe que não.

- Então, uma pessoa que se diz dona de uma consciência politica e social tão grande, não vai votar?  – perguntou-me, com cara de gozo.

Apeteceu-me mandá-la à merda. Em vez disso, expliquei-lhe que tinha deixado de acreditar no poder autárquico durante os onze anos que vivi fora da cidade. Onze anos  vividos numa terra pequena, sem ar nem oportunidades para os de fora e durante os quais percebi que as autarquias são apenas um centro de emprego para os mesmos de sempre. Conheci famílias onde o marido, a mulher, uma cunhada mais dois ou três primos trabalhavam todos  na Câmara Municipal. Fora as cunhas que foram arranjando para os colegas de escola. Que fui  sabendo que alguns do vereadores ou membros da Assembleia Municipal tinham negócios por fora, alguns apoiados pelas autarquias ou apenas amparados pela influência política. Fora os cargos associativos.  E os que não conseguiam a cunha para ter um emprego no Estado, passavam a vida a lamber botas para ver se conseguiam financiamentos para “projectos”.  Ah, senhor Presidente, senhora Vereadora, como está,  cumprimentos à família, sim? Iam dizendo,  enquanto batiam palminhas até a espinha se lhes dobrar em dois. E quem não lhes lambe as botas nem é "da terra", está lixado. 

- É uma porta aberta para o caciquismo e a endogamia – disse-lhe.

E como ainda estava irritada com a cara de gozo, perguntei-lhe:

- Sabes o que é caciquismo e endogamia, não sabes?

Há muitas maneiras de se mandar alguém à merda.

 

03
Set21

Feridos de guerra

Amélia C.

Uma amiga ligou-me para irmos beber café, ao fim do dia, quando eu saísse do trabalho. Combinámos num café perto daqui, um daqueles cafés que têm o preçário escrito numa ardósia, servem limonadas em frascos de doce e fatias de bolo em pratos que imitam placas de xisto.

Pusemos a conversa em dia. Ou melhor, ela pôs. Desfiou uma hora e vinte e cinco minutos de queixas sobre o marido, os filhos,  os vizinhos, os colegas da escola e a mãe. Especialmente sobre a mãe, que é uma daquelas mães que têm um prazer enorme em magoar os filhos. Os filhos são alvos fáceis. Uma bala basta para serem eternamente feridos de guerra. 

Depois ela fez sinal ao empregado e pediu uma fatia de bolo de chocolate.

- Para partilharmos- disse ela. Olhou para mim e perguntou – Engordaste um bocadinho no confinamento, não engordaste?

Disse que sim, justifiquei-me com a ausência de caminhadas e o ter ficado a trabalhar em casa. Sorriu e pediu para tirarmos uma selfie. Estou com ar horrivelmente cansado, protestei, olha-me estas olheiras. Saí do trabalho e nem me maquilhei para vir ter contigo.

À noite, fez like na minha fotografia de perfil, tirada há uns seis anos,  e escreveu: “Linda!”. Depois partilhou a selfie que tiráramos horas antes e escreveu: "Nós as duas, como realmente somos."

Observei a fotografia e achei-a parecida com a mãe dela.

Há agredidos que só encontram alívio quando perpetuam nos outros as agressões que sofreram.

 

 

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