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Casada, fútil, quotidiana e tributável

Casada, fútil, quotidiana e tributável

07
Nov21

Fim de tarde

Amélia C.

Há pouco, a luz nas últimas folhas das árvores da praceta, vista da janela da sala, pareceu-me muito bonita. Não gosto da hora de Inverno, deprimem-me as noites que começam quando ainda deveria ser dia, e a minha escuridão, aquela de que fujo o ano inteiro, fica insustentavelmente mais próxima. Mas, apesar disso, tenho de admitir que esta luz dourada dos dias limpos de Outono é belíssima. Lembra-me as idas à terra da minha mãe. Engraçado, tantas vezes que fomos lá no Verão e lembro-me sempre mais das idas pelos Santos. Da luz dourada que escorria pelas paredes de granito e pelo caminho de terra batida, do cheiro a fumeiro, dos sacos de sarapilheira com pinhas, do cheiro a maçãs e a pó no sótão de telha vã, dos homens a partirem as nozes com as mãos, das nódoas de tinto na toalha, da minha mãe a dizer ao meu pai, não bebas tanto que vais guiar de noite, que agora faz-se noite mais cedo, a minha mãe, encostada à bancada da cozinha, o casaco de malha pelas costas, anda, vamos agora, antes que se faça tarde, a voz resignada a escorrer-lhe pelo canto dos lábios apertados, o cheiro a maçãs e fumeiro, o baço do granito e a poeira levantada do caminho da terra batida a encardirem-lhe a vontade e a cruzarem-lhe o casaco de malha como se fosse um xaile, anda, vamos agora antes que se faça noite, a noite a fazer-se no caminho e apesar do hálito a vinho do meu pai, a luz do fim dia, vista da janela do carro, a parecer-me muito bonita.

05
Nov21

Alívio

Amélia C.

Enquanto arrumava as coisas na secretária, a Rafaela dos recursos humanos fez questão de me dizer, mesmo sem eu lhe ter perguntado nada, que ainda ficava pelo menos mais uma hora. Fiz um daqueles sorrisos meiguinhos e disse-lhe, que aborrecimento, Rafaela, mas olha está aí o fim-de-semana, pensa positivo. As minhas colegas de trabalho dizem muito isso, “pensa positivo” e eu também digo para não destoar. Mas o que eu pensei, enquanto era uma jóia com a Rafaela, foi “Estou-me a cagar para a tua vida”. Mas a Rafaela tem muito esse hábito irritante de me comunicar coisas avulsas sobre a vida dela, a qual consegue ser quase tão desinteressante como a minha. Mas mais irritante ainda é a mania que ela tem de ouvir Ennio Morriconne, (deve pensar que isso lhe dá uma grande erudição), quando eu, em vez de estar a trabalhar, me ponho a escrever para o blogue. Não se consegue escrever nada de jeito ao som de Ennio Morriconne, só pieguices delicodoces, cuspidas com baba e ranho. Como aquelas que eu escrevia e que não valiam um peido, no tempo em que eu me tinha muito conta. Entretanto passou-me, pois percebi que sou tão mediocremente merdosa quanto os outros e passei a escrever melhor. Foi dos poucos alívios que tive na minha vida.

02
Nov21

Temporais

Amélia C.

Tenho medo de temporais. Talvez seja a minha única superstição, lembram-me que não somos nada, que não controlamos nada, que estamos à mercê de uma coisa qualquer, talvez da ilusão de tomarmos as decisões certas.

Não sei quando é que lhes ganhei este medo. Em criança não o tinha. Dos meus medos de infância só me lembro do medo que tinha do escuro. Lembro-me que, se tivesse de me levantar à noite, corria no corredor da casa para que o escuro não me agarrasse. Conhecia pelo tacto todos os móveis, todas as esquinas do corredor. Por isso aprendi a andar no escuro e a dormir de estores abertos, para que a luz dos candeeiros da rua me iluminasse o quarto e esconjurasse as sombras que me aterrorizavam. Durante muitos anos era a luz das ruas vazias e as luzes dos outros que me faziam esquecer desse medo. Até que perdi tudo numa qualquer rajada e ganhei medo aos temporais. E, para fingir que não aconteciam, passei a baixar os estores sempre nas noites de mau tempo e apreendi a guiar-me pelas as sombras que deixara nas paredes do meu quarto.

 

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