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Casada, fútil, quotidiana e tributável

Casada, fútil, quotidiana e tributável

10
Ago21

Fim da linha

Amélia C.

Na empresa puseram-me a trabalhar com a miúda nova. É ela quem agora me orienta. Eu, na meia-idade, sou agora orientada por uma miúda que ainda não fez trinta anos, sete ou oito anos a mais que a minha filha mais velha, mas que já esteve à frente do marketing de uma grande empresa nacional. Eu, que à conta de uma depressão e da Troika, estive quase dez anos a marcar passo na carreira, ando a receber ordens e formação de uma miúda. Sinto-me totalmente ultrapassada. Humilhada. A miúda até é gentil, cuidadosa. Não se põe em bicos dos pés. Mas sinto-me velha. Fico a olhá-la, toda jeitosa, sem a cara a ficar pendurada na linha do queixo, sem olheiras nem rugas a encovarem-lhe os olhos, sem banhas nas costas a verem-se nas t-shirts com frases parvas e bonecada que já não é para a minha idade, sem um cú que já não enche as calças e cai pelas pernas abaixo. Ela sabe  vestir-se, deve ter um moodboard no Pinterest, com os outfits a usar. Eu nem dizer estas palavras sei, as minhas filhas estão sempre a emendar-me, a rirem-se, ó mãe não é assim que se diz.

Os homens que trabalham na empresa dão-lhe toda a atenção quando estão ao pé dela. Depois, esta rapariga percebe muito mais daquilo que faz do que eu, usa termos em inglês que tenho de ir pesquisando sorrateiramente no Google para saber o que querem dizer. Manda-me links com coisas para eu aprender. Mas cada vez menos me apetece aprender coisas novas. Aliás, a primeira vontade que tenho, sempre que ela me manda um link novo, é responder-lhe torto, mandá-la à merda. Mas é o orgulho ferido a falar mais alto e o orgulho não paga contas. Mas esta miúda fere-me de morte todos dias. A sua gentileza humilha-me. Tornei-me numa sobra invisível, sem nada para ensinar. Nada do que sei interessa a alguém. Ninguém quer saber. No fundo, detesto-a por me fazer sentir permanentemente acabada, medíocre. Detesto-a sempre que tem de me explicar alguma coisa, fá-lo com gentileza, mas, no fundo, eu sei que é condescendência. Detesto o seu cuzinho empinado, as suas unhas de manicura retocadas à sexta-feira, a sua roupinha impecável.

Chegaste ao fim da linha, Amélia, agora já só trabalhas para pagar contas, para continuares a descontar para a reforma, para ensinares como é que se tiram nódoas de sangue, como se cortam os pés das flores para que durem mais nas jarras e para estranhares as coisas que as tuas filhas te contam, não era assim quando tinhas a idade delas, já nem te lembras como eras, fazes um esforço, mas essa miúda que foste já se perdeu. Já não serves para nada, Amélia. Ninguém quer saber do que tu achas nem do que tu sabes, o que tu sabes já não se usa, é totalmente inútil. Cala-te, Amélia. Faz o que a miúda te diz, aproveita para aprender qualquer coisa, paga as contas e cala-te. Não serves para mais nada.

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