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Casada, fútil, quotidiana e tributável

Casada, fútil, quotidiana e tributável

06
Ago21

O idílio dos simples

Amélia C.

Chamei o elevador. Quando abri a porta vi que a minha vizinha do quinto também descia. Cumprimentei-a. Ela levantou os olhos do telemóvel por um instante, subiu a máscara que trazia por debaixo do queixo e retribuiu-me com um bom dia sussurrado. Descemos três andares em silêncio e, começando a coreografia diária, abri a porta do elevador, dando-lhe passagem, obrigada, disse ela, descemos os cinco degraus do patamar, depois ela carregou no trinco da porta da rua, dando-me passagem a mim, obrigada, disse eu. Cá fora a manhã estava quente, páramos um instante no patamar, ela tirou as chaves do carro de dentro da mala, sorrimos, mesmo sabendo que só se nos viam os olhos e seguimos em direções opostas.

Não sei o nome desta minha vizinha, assim como não conheço nenhum dos meus vizinhos do prédio. Vivemos cá há cinco anos e só os conheço por alguns hábitos, como o ouvir e fechar as portas, os saltos no soalho, os gritos das crianças pequenas. Enquanto vivi na Vila também só conhecia de vista os meus vizinhos.  Mas, alguns deles, os que eram da terra, conheciam-me a mim, sabiam quem eu era. Quando se chega a uma terra pequena as pessoas procuram saber quem somos. Para eles eu sempre fui a estrangeira, a que não tinha laços nem raízes nem família dali, a que viera à procura de um idílio rural. A que gerava desconfiança por não ser de lá, por não ser como eles.  A que merecia um cumprimento educado mas cujas filhas eram postas de lado, substituídas pelas filhas das amigas de escola das mães. Ou das primas em primeiro, segundo, terceiro, quarto grau, mas ainda de sangue. As amizades, nas terras pequenas, fazem-se com quem é de lá. Que vem de fora não serve para isso. Quem vem de fora cumprimenta-se com cortesia, mas sempre por cima do muro, com vedação de alumínio verde para que não metam o nariz, para que não saibam demais, sabe-se lá quem são estes que vieram para aqui. As terras pequenas expulsam quem vem de fora de modo lento e doloroso,  como os nossos corpos expulsam os lenhos que se nos cravaram na pele e na carne.

Nas cidades há um desprendimento e uma solidão que assustam. A cidade recebe-nos com pré-aviso de que nada mais haverá em troca. Mas a solidão das terras pequenas, fruto de uma cruel expectativa de proximidade, não é melhor. O idílio dos simples só fica bem na literatura.

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